O Melhor Amigo
Fernando Sabino
A mãe estava na sala, costurando.
O menino abriu a porta da rua, meio ressabiado, arriscou um passo
para dentro e mediu cautelosamente a distância. Como a mãe não se
voltasse para vê-lo, deu uma corridinha em direção de seu quarto.
– Meu filho? – gritou ela.
– O que é – respondeu, com o
ar mais natural que lhe foi possível.
– Que é que você está
carregando aí?
Como podia ter visto alguma coisa,
se nem levantara a cabeça? Sentindo-se perdido,tentou ainda ganhar
tempo.
– Eu? Nada…
– Está sim. Você entrou
carregando uma coisa.
Pronto: estava descoberto. Não
adiantava negar – o jeito era procurar comovê-la.Veio caminhando
desconsolado até a sala, mostrou à mãe o que estava carregando:
– Olha aí, mamãe: é um
filhote…
Seus olhos súplices aguardavam a
decisão.
– Um filhote? Onde é que você
arranjou isso?
– Achei na rua. Tão bonitinho,
não é, mamãe?
Sabia que não adiantava: ela já
chamava o filhote de isso. Insistiu ainda:
– Deve estar com fome, olha só
a carinha que ele faz.
– Trate de levar embora esse
cachorro agora mesmo!
– Ah, mamãe… – já compondo
uma cara de choro.
– Tem dez minutos para botar
esse bicho na rua. Já disse que não quero animais aqui em casa.
Tanta coisa para cuidar, Deus me livre de ainda inventar uma amolação
dessas.
O menino tentou enxugar uma
lágrima, não havia lágrima. Voltou para o quarto, emburrado:
A gente também não tem nenhum
direito nesta casa – pensava. Um dia ainda faço um estrago louco.
Meu único amigo, enxotado desta maneira!
– Que diabo também, nesta casa
tudo é proibido! – gritou, lá do quarto, e ficou
esperando a reação da mãe.
esperando a reação da mãe.
– Dez minutos – repetiu ela,
com firmeza.
– Todo mundo tem cachorro, só
eu que não tenho.
– Você não é todo mundo.
– Também, de hoje em diante eu
não estudo mais, não vou mais ao colégio, não
faço mais nada.
faço mais nada.
– Veremos – limitou-se a mãe,
de novo distraída com a sua costura.
– A senhora é ruim mesmo, não
tem coração!
– Sua alma, sua palma.
Conhecia bem a mãe, sabia que não
haveria apelo: tinha dez minutos para brincar com seu novo amigo, e
depois… ao fim de dez minutos, a voz da mãe, inexorável:
– Vamos, chega! Leva esse
cachorro embora.
– Ah, mamãe, deixa! –
choramingou ainda: – Meu melhor amigo, não tenho mais
ninguém nesta vida.
ninguém nesta vida.
– E eu? Que bobagem é essa,
você não tem sua mãe?
– Mãe e cachorro não é a
mesma coisa.
– Deixa de conversa: obedece sua
mãe.
Ele saiu, e seus olhos prometiam
vingança. A mãe chegou a se preocupar: meninos nessa idade, uma
injustiça praticada e eles perdem a cabeça, um recalque, complexos,
essa coisa
– Pronto, mamãe!
E exibia-lhe uma nota de vinte e
uma de dez: havia vendido seu melhor amigo por trinta dinheiros.
– Eu devia ter pedido cinqüenta,
tenho certeza que ele dava murmurou, pensativo.
A útima crônica
A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês.
O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho - um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "Parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura - ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido - vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso."
BRINCADEIRA
Luis
Fernando Veríssimo
Começou
como uma brincadeira. Telefonou para um conhecido e disse:
– Eu
sei de tudo.
Depois
de um silêncio, o outro disse:
– Como
é que você soube?
– Não
interessa. Sei de tudo.
– Me
faz um favor. Não espalha.
– Vou
pensar.
– Por
amor de Deus.
– Está
bem. Mas olhe lá, hein?
Descobriu
que tinha poder sobre as pessoas.
– Sei
de tudo.
– Co-
como?
– Sei
de tudo.
– Tudo
o quê?
– Você
sabe.
– Mas
é impossível. Como é que você descobriu?
A
reação das pessoas variava. Algumas perguntavam em seguida:
–
Alguém mais sabe?
Outras
se tornavam agressivas:
– Está
bem, você sabe. E daí?
– Daí
nada. Só queria que você soubesse que eu sei.
– Se
você contar para alguém, eu…
–
Depende de você.
– De
mim, como?
– Se
você andar na linha, eu não conto.
–
Certo.
Uma
vez, parecia ter encontrado um inocente.
– Eu
sei de tudo.
– Tudo
o quê?
– Você
sabe.
– Não
sei. O que é que você sabe?
– Não
se faz de inocente.
– Mas
eu realmente não sei.
– Vem
com essa.
– Você
não sabe de nada.
– Ah,
quer dizer que existe alguma coisa pra saber, mas eu é que não sei
o que é?
– Não
existe nada.
– Olha
que eu vou espalhar…
– Pode
espalhar que é mentira.
– Como
é que você sabe o que eu vou espalhar?
–
Qualquer coisa que você espalhar será mentira.
– Está
bem. Vou espalhar.
Mas
dali a pouco veio um telefonema.
–
Escute. Estive pensando melhor. Não espalha nada sobre
nada daquilo.
–
Aquilo o quê?
– Você
sabe.
Passou
a ser temido e respeitado. Volta e meia alguém se aproximava dele e
sussurrava:
– Você
contou para alguém?
– Ainda
não.
– Puxa.
Obrigado.
Com
o tempo, ganhou uma reputação. Era de confiança. Um dia, foi
procurado por um amigo com uma oferta de emprego. O salário era
enorme.
– Por
que eu? – quis saber.
– A
posição é de muita responsabilidade – disse o amigo. –
Recomendei você.
– Por
quê?
– Pela
sua descrição.
Subiu
na vida. Dele se dizia que sabia tudo sobre todos, mas nunca abria a
boca para falar de ninguém. Além de bem-informado, um gentleman.
Até que recebeu um telefonema. Uma voz misteriosa que disse:
– Sei
de tudo.
– Co-
como?
– Sei
de tudo.
– Tudo
o quê?
– Você
sabe.
Resolveu
desaparecer. Mudou-se de cidade. Os amigos estranharam o seu
desaparecimento repentino. Investigara. O que ele estaria tramando?
Finalmente foi descoberto numa praia remota. Os vizinhos contam que a
voz que uma noite vieram muitos carros e cercaram a casa. Várias
pessoas entraram na casa. Ouviram-se gritos. Os vizinhos contam que
mais se ouvia era a dele, gritando:
– Era
brincadeira! Era brincadeira!
Foi
descoberto de manhã, assassinado. O crime nunca foi desvendado. Mas
as pessoas que o conheciam não têm dúvidas sobre o motivo.
Sabia
demais.
O
ASSALTO
Luís
Fernando Veríssimo
Quando
a empregada entrou no elevador, o garoto entrou
atrás.
Devia ter uns dezesseis, dezessete anos. Preto. Desceram no mesmo
andar. A empregada com o coração batendo.
O
corredor estava escuro e a empregada sentiu que o garoto a seguia.
Botou a chave na fechadura da porta de serviço, já em pânico. Com
a porta aberta, virou-se de repente e gritou para o garoto:
-
Não me bate!
-
Senhora?
-
Faça o que quiser, mas não me bate!
-
Não, senhora, eu...
A
dona da casa veio ver o que estava havendo. Viu o garoto na porta e o
rosto apavorado da empregada e recuou, até pressionar as costas
contra a geladeira.
-
Você está armado?
-
Eu? Não.
A
empregada, que ainda não largara o pacote de compras,
aconselhou
a patroa, sem tirar os olhos do garoto:
-
É melhor não fazer nada, madame. O melhor é não gritar.
-
Eu não vou fazer nada, juro! – disse a patroa, quase aos
prantos.
– Você pode entrar. Você pode fazer o que quiser. Não precisa
usar de violência.
O
garoto olhou de uma mulher para a outra. Apalermado.
Perguntou:
-
Aqui é o 712?
-
O que você quiser. Entre. Ninguém vai reagir.
O
garoto hesitou, depois deu um passo para dentro da
cozinha.
A empregada e a patroa recuaram ainda mais. A patroa esgueirou-se
pela parede até chegar à porta que dava para a saleta de almoço.
Disse:
-
Eu não tenho dinheiro. Mas o meu marido deve ter. Ele
está
em casa. Vou chamá-lo. Ele lhe dará tudo.
O
garoto também estava com os olhos arregalados.
Perguntou
de novo:
-
Este é o 712? Me disseram para pegar umas garrafas no
712.
A
mulher chamou, com a voz trêmula:
-
Henrique!O marido apareceu na porta do gabinete. Viu o rosto da
mulher,
o rosto da empregada e o garoto e entendeu tudo. Chegou a hora,
pensou. Sempre me indaguei como me comportaria no
caso
de um assalto. Chegou a hora de tirar a prova.
-
O que você quer? – perguntou, dando-se conta em
seguida
do ridículo da pergunta. Mas sua voz estava firme.
-
Eu disse que você tinha dinheiro – falou a mulher.
-
Faço um trato com você – disse o marido para o garoto –
dou
tudo de valor que tenho em casa, contanto que você não toque em
ninguém.
E
se as crianças chegarem de repente? Pensou a mulher.
Meu
Deus, o que esse bandido vai fazer com as minhas crianças?
O
garoto gaguejou:
-
Eu... eu... é aqui que tem umas garrafas para pegar?
-Tenho
um pouco de dinheiro. Minha mulher tem jóias. Não
temos
cofre em casa, acredite em mim. Não temos muita coisa.
-Você
quer o carro? Eu dou a chave.
Errei,
pensou o marido. Se sair com o carro, ele vai querer ter certeza de
que ninguém chamará a polícia. Vai levar um de nós com ele. Ou
vai nos deixar todos amarrados. Ou coisa pior...
-
Vou pegar o dinheiro, está bem? – disse o marido.
O
garoto só piscava.
-
Não tenho arma em casa. É isso que você está pensando?
Você
pode vir comigo.
O
garoto olhou para a dona da casa e para a empregada.
-
Você está pensando que elas vão aproveitar para fugir, é
isso?
– continuou o marido. – Elas podem vir junto conosco.
Ninguém
vai fazer nada. Só não queremos violência. Vamos todos para o
gabinete.
A
patroa, a empregada e o Henrique entraram no gabinete.
Depois
de alguns segundos, o garoto foi atrás. Enquanto abria a gaveta
chaveada da sua mesa, o marido falava:
-
Não é para agradar, mas eu compreendo você. Você é
uma
vítima do sistema. Deve estar pensando, “Esse burguês cheio da
nota está querendo me conversar”, mas não é isso não. Sempre me
senti culpado por viver bem no meio de tanta miséria. Pode perguntar
para a minha mulher. Eu não vivo dizendo que o crime é um problema
social? Vivo dizendo. Tome. É todo o dinheiro que tenho em casa. Não
somos ricos. Somos, com alguma boa vontade, da média alta. Você tem
razão. Qualquer dia também começamos a assaltar para poder comer.
Tem que mudar o sistema. Tome.
O
garoto pegou o dinheiro, meio sem jeito.
-
Olhe, eu só vim pegar as garrafas...
-
Sônia, busque as suas jóias. Ou melhor, vamos todos
buscar
as jóias.
Os
quatro foram para a suíte do casal. O garoto atrás. No
caminho,
ele sussurrou para a empregada:
-
Aqui é o 712?
-
Por favor, não! – disse a empregada, encolhendo-se.
Deram
todas as jóias para o garoto, que estava cada vez
mais
embaraçado. O marido falou:
-Não
precisa nos trancar no banheiro. Olhe o que eu vou
fazer.
Arrancou o fio do telefone da parede.
-
Você pode trancar o apartamento por fora e deixar as
chaves
lá embaixo. Terá tempo de fugir. Não faremos nada. Só não
queremos violência.
-
Aqui não é o 712? Me disseram para pegar umas garrafas.
-
Nós não temos mais nada, confie em mim. Também somos vítimas do
sistema. Estamos do seu lado. Por favor, vá embora!
A
empregada espalhou a notícia do assalto por todo o prédio.
Madame
teve uma crise nervosa que durou dias. O marido
comentou
que não dava mais para viver nesta cidade. Mas achava que tinha se
saído bem. Não entrara em pânico. Ganhara um pouco da simpatia do
bandido. Protegera o seu lar da violência. E não revelara a
existência do cofre com o grosso do dinheiro, inclusive dólares e
marcos, atrás do quadro da odalisca.
À
beira-mar
Stanislaw
Ponte Preta
Por
que será que tem gente que vive se metendo com o que os outros estão
fazendo? Pode haver coisa mais ingênua do que um menininho brincando
com areia, na beira da praia? Não pode, né? Pois estávamos nós
deitados a doirar a pele para endoidar mulher, sob o sol de
Copacabana, em decúbito ventral (não o sol, mas nós) a ler
“Maravilhas da Biologia”, do coleguinha cientista Benedict Knox
Ston, quando um camarada se meteu com uma criança, que brincava com
a areia.
Interrompemos
a leitura para ouvir a conversa. O menininho já estava com um balde
desses de matéria plástica cheio de areia, quando o sujeito
intrometido chegou e perguntou o que é que o menininho ia fazer com
aquela areia.
O
menininho fungou, o que é muito natural, pois todo menininho que vai
na praia funga, e explicou pro cara que ia jogar a areia num casal
que estava numa barraca lá adiante. E apontou para a barraca.
Nós
olhamos, assim como olhou o cara que perguntava ao menininho. Lá, na
barraca distante, a gente só conseguia ver pares de pernas ao sol. O
resto estava escondido pela sombra, por trás da barraca. Eram dois
pares, dizíamos, um de pernas femininas, o que se notava pela graça
da linha, e outro masculino, o que se notava pela abundante vegetação
capilar, se nos permitem o termo.
― Eu
vou jogar a areia naquele casal por causa de que eles estão se
abraçando e se beijando-se muito – explicou o menininho, dando
outra fungada.
O
intrometido sorriu complacente e veio com lição de moral.
― Não
faça isso, meu filho – disse ele (e depois viemos a saber que o
menino era seu vizinho de apartamento). Passou a mão pela cabeça do
garotinho e prosseguiu: ― Deixe o casal em paz. Você ainda é
pequeno e não entende dessas coisas, mas é muito feio ir jogar
areia em cima dos outros.
O
menininho olhou pro cara muito espantado e ainda insistiu:
― Deixa
eu jogar neles.
O
camarada fez menção de lhe tirar o balde da mão e foi mais
incisivo:
―Não
senhor. Deixe o casal namorar em paz. Não vai jogar areia não.
O
menininho então deixou que ele esvaziasse o balde e disse: ―Tá
certo. Eu só ia jogar areia neles por causa do senhor.
― Por
minha causa? Estranhou o chato. ― Mas que casal é aquele?
― O
homem eu não sei – respondeu o menininho. ― Mas a mulher é a
sua.
Preta,
Stanislasw Ponte. O gol do padre & outras crônicas. Ática:
1997.
O
amor Acaba
Paulo
Mendes Campos
O amor acaba. Numa esquina, por
exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba
em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou
a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva
contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto,
polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora
tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não
veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como
tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos
de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha
acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o
amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de
alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que
passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de
Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no
elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã
dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula
dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas
femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da
Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na
compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três
goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes
semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu,
abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu
de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos
de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na
poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de
ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos
roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida
e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o
amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o
amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio,
frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma
carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e
o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na
mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos
cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre
astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no
coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável
para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos,
até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma
que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às
vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de
bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém,
humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora
melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança;
uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o
álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da
primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto
do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor
acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os
lugares e a qualquer minuto o amor acaba.
In: O
amor acaba, Paulo Mendes Campos, seleção e apresentação
Flávio Pinheiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2013
O HOMEM QUE CONHECEU O AMOR
AFFONSO ROMANO DE
SANT"ANNA
Do alto de seus oitenta anos, me
disse: “na verdade, fui muito amado.” E dizia isto com tal
plenitude como quem dissesse: sempre me trouxeram flores, sempre comi
ostras à beira-mar.
Não havia arrogância em sua
frase, mas algo entre a humildade e a petulância sagrada. Parecia um
pintor, que, olhando o quadro terminado, assina seu nome embaixo.
Havia um certo fastio em suas palavras e gestos. Se retirava de um
banquete satisfeito. Parecia pronto para morrer, já que sempre
estivera pronta para amar.
Se eu fosse rei ou prefeito teria
mandado ergue-lhe uma estátua. Mas, do jeito que falava, ele pedia
apenas que no seu túmulo eu escrevesse: “aqui jaz um homem que
amou e foi muito amado”. E aquele homem me confessou que amava sem
nenhuma coerção. Não lhe encostei a faca no peito cobrando algo.
Ele que tinha algo a me oferecer. Foi muito diferente daqueles que
não confessam seus sentimentos nem mesmo debaixo de um “pau de
arara”: estão ali se afogando de paixão, levando choques de amor,
mas não se entregam. E no entanto, basta-lhes a ficha que está tudo
lá: traficante ou guerrilheiro do amor. Uns dizem: casei várias
vezes. Outros assinalam: fiz vários filhos. Outro dia li numa
revista um conhecido ator dizendo: tive todas as mulheres que quis.
Outros ainda, dizem: não posso viver sem fulana (ou fulano). Na
Bíblia está que Abraão gerou Isaac, Isaac gerou Jacó e Jacó
gerou as doze tribos de Israel. Mas nenhum deles disse: “Na
verdade, fui muito amado”.
Mas quando do alto de seus oitenta
anos aquele homem desfechou sobre mim aquela frase, me senti não
apenas como o homem que quer ser engenheiro como o pai. Senti-me um
garoto de quatro anos, de calças curtas, se dizendo: quando eu
crescer quero ser um homem de oitenta anos que diga: “amei muito,
na verdade, fui muito amado.” Se não pensasse nisto não seria
digno daquela frase que acabava de me ser ofertada. E eu não poderia
desperdiçar uma sabedoria que levou 80 anos para se formar. É como
se eu não visse o instante que a lagarta se transformara em
libélula.
Ouvindo-o, por um instante,
suspeitei que a psicanálise havia fracassado; que tudo aquilo que
Freud sempre disse, de que o desejo nunca é preenchido, que se o é,
o é por frações de segundos, e que a vida é insatisfação e
procura, tudo isto era coisa passada. Sim, porque sobre o amor há
várias frases inquietantes por aí... Bilac nos dizia salomônico:
“eu tenho amado tanto e não conheci o amor”. O Arnaldo Jabor
disse outro dia a frase mais retumbante desde “Independência ou
morte” ao afirmar: “o amor deixa muito a desejar”. Ataulfo
Alves dizia: “eu era feliz e não sabia”.
Frase que se pode atualizar: eu
era amado e não sabia. Porque nem todos sabem reconhecer quando são
amados. Flores despencam em arco-íris sobre sua cama, um banquete
real está sendo servido e, sonolento, olha noutra direção.
Sei que vocês vão me repreender,
dizendo: deveria ter nos apresentado o personagem, também o
queríamos conhecer, repartir tal acontecimento. E é justa a
reprimenda. Porque quando alguém está amando, já nos contamina de
jasmins. Temos vontade de dizer, vendo-o passar - ame por mim, já
que não pode se deter para me amar a mim. Exatamente como se diz a
alguém que está indo a Europa: por favor, na Itália, coma e beba
por mim.
Ver uma pessoa amando é como ler
um romance de amor. É como ver um filme de amor. Também se ama por
contaminação na tela do instante. A estória é de outro, mas passa
das páginas e telas para a gente.
Todo jardineiro é jardineiro
porque não pode ser flor.
Reconhece-se a 50m um desamado, o
carente. Mas reconhece-se a 100m o bem amado. Lá vem ele: sua luz
nos chega antes de sua roupa e pele.
Sim, batem nas dobras de seu ser.
Pássaros pousam em seus ombros e frases. Flores estão colorindo o
chão em que pisou.
O que ama é um disseminador.
Tocar nele é colher virtudes.
O bem amado dá a impressão de
inesgotável. E é o contrário de Átila: por onde passa renascem
cidades.
O bem amado é uma usina de luz.
Tão necessário à comunidade, que deveria ser declarado um bem de
utilidade pública.